Recordações de uma "Velha Águia" do CAN

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Recordações de uma "Velha Águia" do CAN

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Recordações de uma "Velha Águia" do CAN

* Aristeu Teixeira de Mendonça- Cel Av Ref

Como esquecer da velha Base Aérea do Galeão, onde lá pelas 04:00 hs da madrugada já havia movimento no rancho repleto de tripulantes que concorriam aos vôos do CAN, vindo de inúmeras unidades da FAB espalhadas pelo Brasil.
Na primeira revoada, às 05:30Hs, partiam os vôos para destinos mais longínquos como o Acre, Roraima, Belém, Noronha, Bolívia, Estados Unidos, Lima, Santiago do Chile, Manaus, etc.
Depois, às 07:00Hs, saia a segunda leva para lugares mais próximos como Assunção, Montevidéu, Uruguaiana, Brasília, Ponta Porã, São Raimundo Nonato, Picos do Piauí etc. Afora os vôos extras que sempre eram muitos!
Para agüentar tudo isto o nosso Grupo, o 1ºGrupo de Transporte, possuia 36 aeronaves. Os pilotos orgânicos voavam sem cessar, não só nessas rotas como também nos vôos locais de instrução ou de experiência pós revisão, feitos às vezes até nas madrugadas.
Minha esposa costumava assinalar com uma cruz em uma folhinha de calendário os dias em que pernoitava fora de casa, viajando. Então, em outubro do de 1961 o médico do Grupo (sim! Naquele época existia até médico de esquadrão ou, no nosso caso, do grupo!) pois é, o “bandido” conseguiu convencer o meu Comandante a me proibir de entrar na Base por dez dias. Motivo: já com 800hs de vôo no ano eu apresentava sintomas de fadiga aérea. Vejam só! Voltei para casa indignado e a minha resignada - nem tanto - esposa me mostrou as suas anotações na folhinha: de tantas cruzes aquilo era um verdadeiro cemitério! E, assim, finalmente ela pode desfrutar todos aqueles tantos raros dias seguidos em companhia do marido!
A rota de que mais gostava era a Rio-Manaus, via Xingu, Jacareacanga, Cachimbo.Foi quando conheci os Vilas Boas, o Orlando, e a sua futura esposa a enfermeira Marina, o Cláudio e o Dr. Noel. E um índio iualapiti, o Aritana, que na primeira vez que vi montado em uma bicicleta se vestia à caráter, ou seja, usava uma camisa e mais nada- o trumai Piunim, o camayurá Tucumã e o nosso futuro cozinheiro o também camayurá o Teuê que é hoje sargento da FAB e que começava a aprender a profissão com o Taifeiro Nísio,verdadeiro Chef em matéria de tucunarés, pintados, patos selvagens e churrascos de boi criado ali mesmo no destacamento do Xingu.
Como esquecer esses dias? Como esquecer do “boca de ouro”, caboclo então vivendo no Parque do Xingu, fugido da polícia de Mato Grosso. Contava-se que cada um de seus dentes de ouro, e eram muitos, representava um caboclo despachado por ele para uma “vida melhor”! Era bom ser amigo dele!
Como esquecer da “boite" da Rosinha”?
A “boite" da Rosinha” era um trote que pregávamos, geralmente nos jovens médicos que compunham pela primeira vez a tripulação. Durante a viagem contávamos longas histórias sobre a Rosinha, a bela dona da “boite", muito chegada a um “fabiano” mas, com um “dono” extremamente ciumento, o Chico Preto. Para visitar a “boite” era preciso tomar muito cuidado. Ao chegar no Xingu o médico já estava ansioso para conhecer a “boite”. E, lá partiam eles para a cabeceira da pista , junto a qual estaria a tal “casa noturna”, sempre acompanhados por um caboclo – um funcionário do destacamento - “freqüentador” do local. Antes , porém, para lá despachávamos dois sargentos armados que ficavam “atocaiados” na mata a espera dos “visitantes”. Quando estes se aproximavam os “recepcionistas” punham-se a disparar as armas e o caboclo que acompanhava a “vítima” começava a gritar apavorado para que corressem pois o Chico Preto estava furioso e atirando neles pra matar. O “novinho” disparava esbaforido em direção ao destacamento e depois de uma desabalada correria pela pista de pouso era por nós recebidos com gostosas e sonoras gargalhadas. Como era possível acreditar que naquele mato existisse uma “boite”? Mas, via de regra, eles acreditavam! O difícil era convencer a vítima de que tudo aquilo não passara de uma “amistosa” brincadeira.
A viagem mais complicada era para La Paz.Cruzava. Se o altiplano boliviano, nos Andes, em situações críticas de vôo com os velhos C-47 mal se agüentando a 17 ou 18 mil pés de altitude com a sua velocidade reduzida de 140 para 105 MPH . Oxigênio só para a tripulação - os passageiros se “virando” mascando folhas de coca ou dando um cheiradinha, de vez em quando, numa garrafa portátil de oxigênio, por gentil cortesia de nosso mecânico de vôo.
Numa das viagens, após passar por Oruro e a caminho de Cochabamba o avião teve um mono-motor e se despencou lá de cima acabando por pousar em emergência lá no altiplano. Hoje, só de lembrar dá arrepio!
Havia também fatos curiosos, como na rota do Acre. Ao pousar em Tarauacá éramos recebidos à caráter pelo guarda campo e chefe do Posto CAN, o “Carrapicho”, que hasteava solenemente a Bandeira Nacional e tocava a marcha batida. Depois sempre nos presenteava com frutas locais que tinham tamanhos desproporcionais - um abacaxi era do tamanho de um melancia grande; um caju, o de uma manga e as bananas nem se diga.
Na decolagem era bom não olhar para traz do avião onde tinha de tudo, além de excesso de gente. Um sargento novato, certa vez, chegou assustado na cabine e disse;- tenente, tem gente demais a bordo! Calma, respondi, fecha a porta reza para não ocorrer um mono-motor na decolagem e não estar chovendo em Rio Branco - o piso da pista de Rio Branco era de tijolos e virava sabão quando molhada - e vamos em frente.
O CAN era também o responsável pela manutenção da “próspera indústria de conserto de roupas” transportando entre Xapuri, Brasiléia e Tarauacá a maquina de costura itinerante, que ficava uma semana em cada localidade.
A volta do Acre se fazia por duas rotas:-por Cuiabá, via Vilhena, onde na época havia unicamente a pista de pouso, a estação de rádio da FAB e os ferozes índios Cinta Larga.Ou então, por Guajará Mirim e Forte Príncipe da Beira- forte este construído pelos portugueses como sentinela avançada da fronteira oeste.O sobrevôo de extensas áreas semi alagadas entre o Brasil e a Bolívia, já parte do Pantanal que se estende até sul do Mato Grosso era uma coisa linda. Aliás, o Pantanal é todo uma “lindeza só” . Eu era tão apaixonado por aquilo que um dia desejei que quando eu morresse minhas cinzas fossem lançadas de avião sobre ele.
Na rota Rio- Manaus, o horror era pousar em Jacareacanga e ser devorado pelas nuvens de pium. Mas, para consolo, havia a Zona Franca de Manaus para comprar “bagulho”. Aliás, na época, Manaus não tinha iluminação nas ruas a não ser em uma única praça onde havia um prédio do IAPTEC, no qual a COMARA tinha um apartamento. Era o nosso pernoite antes de partir para Moura, com sua pista sempre enlameada, Caracaraí, Boa Vista , Normandia etc.
Voar de C 47, naquela época era um aventura. Só dispúnhamos de rádio-compasso e um VHF de quatro canais. Quando chegaram os primeiros VHF com 12 canais foi “um luxo só”! E, nada de radar, VOR, GPS....Dentro de mau tempo, para adivinhar se havia um CB por perto o único e primitivo “recurso” era olhar para a temperatura da cabeça do cilindro do motor - se baixasse demais era sinal de CB. Só não se sabia de que lado ele estava. Era tudo no “sentimento”. Que loucura! Parece incrível, nos dias de hoje que voássemos assim. Mas, estávamos acostumados. Os VOR só chegaram com os C-54.
Nesse avião, voltando de uma viagem para os EEUU, resolvemos dar um susto no nosso “come e dorme”- tal como chamávamos os médicos que acompanhavam os vôos naquela rota, onde diferentemente das rotas do sertão, não tinham muito o que fazer. Entre Nassau, nas Bahamas e Piarco, em Trinidad-Tobago são várias horas de vôo sobre o mar do Caribe com as suas águas de um azul intenso.A nossa vítima dormia pesado no beliche de descanso da tripulação e nós resolvemos acordá-lo aos gritos: acorda, acorda , o avião está caindo! Vamos pousar n´água! Você sabe nadar?
O pobre médico só recuperou a calma após pousarmos tranquilamente......no Galeão!
A participação dos médicos em viagens internacionais era um prêmio ao exaustivo trabalho por eles desenvolvidos nos vôos pelos sertões do Brasil onde, em cada pouso, não se cansavam em atender a uma fila interminável de doentes que se formavam na porta dos aviões, a espera de uma rápida consulta médica. Era a única esperança de socorro daquela gente abandonada pelos poderes públicos,e o único apoio de saúde que a caboclada recebia. As amostras grátis que os “doc” distribuíam eram, freqüentemente, tudo com o que eles podiam contar, em termos de medicamentos.
Por esses motivos os “doc” eram sempre os responsáveis pelos atrasos nas decolagens. Assim sofriam, de uma lado a pressão dos pilotos e, de outro, da expectativas dos seus pobres “clientes”. Mas, as necessidades dos doentes sempre prevaleciam.
Além das viagens de linha havia a extras.
Numa delas, a FUNAI nos solicitou uma missão para resgatar índios cajabis que estavam em situação crítica próximo ao rio Teles Pires e levá-los para o Posto Leonardo, sede do Parque do Xingu. Pernoitamos em Diaurum, que significa onça preta,e fivca na margem direita do rio Culuene. Passamos a noite ouvindo as histórias do Orlando. O Orlando era um bom contador de “causos” e de suas aventuras com os primeiros contatos com várias tribos. Muitas vezes para provocá-lo, dizíamos que ele era um grande mentiroso. Ele se limitava a ouvir e dar um daqueles seus sorrisos marotos.
No dia seguinte, antes da decolagem, perguntamos ao “capitão” dos cajabis que nos acompanhava na missão, para que lado era a aldeia. Ele levantou o braço e apontou em uma determinada direção. Pensei- esse índio está “chutando”!Levei-o à cabine e repeti a pergunta e ele o gesto. Com a bússola de bordo marquei o rumo;- 270°. Decolei tomei aquele rumo e 45 minutos depois estava sobre a aldeia. É impressionante a noção de orientação dos índios.
Na volta, ainda tivemos que socorrer o índio Canato, o pai do Aritana, que havia sido atingido por um raio. Enquanto o “doc” exercia a sua medicina fui tomar um banho de rio junto com um indiozinho trumai. No rio lhe perguntei o que ele iria comer e o curumim me respondeu, peixe. Mas, onde está o peixe, perguntei. E, ele com toda a naturalidade apontou para a água e disse :-ali! Que coisa mais singela!
Bem, afinal, essas viagens me custaram duas malarias!
Foi triste quando em 1980, já coronel e Adido Aeronáutico na Argentina, recebi a notícia da suspensão das viagens do CAN ao exterior. Mais triste ainda, foi o fim do COMTA e do próprio CAN que hoje ressuscita com poucas linhas lá na Amazônia. Mas, certamente, com o mesmo espírito de outrora.
Toda essa epopéia do Correio Aéreo Nacional ocoreu no século passado num Brasil que já não é o mesmo. Num Brasil onde não existiam PCC, Comando vermelho, narcotráfico, mensalão,guerrilha urbana, desmatamento desenfreado, favelas por toda parte, pornô novelas de televisão, mendigos em cada cruzamento, crianças ainda analfabetas no quinto ano de escola, balas perdidas,ONG,MST... Num Brasil que não era competidor do Haiti, apenas!
Num Brasil onde existia o CAN! E existindo o CAN, para as gentes esquecidas espalhadas pelos vastos sertões do Brasil existia sempre uma última esperança.
Ocorreu numa época em que, comparados com os recursos de hoje, voar era uma aventura. Mas, numa época, em que éramos apaixonados pelo o que fazíamos.
Como esquecer tudo aquilo?
Este longo “causo” é uma homenagem aos bravos pilotos e demais tripulantes do CAN em todos os tempos. Aos que ainda estão “nos calços” e aos que já partiram para a sua última viagem.
E, às suas famílias e às suas esposas, essas heroínas esquecidas que nos aturavam as ausências, cuidavam sozinhas de nossos filhos, moravam conosco em um lugar horrível, o Carico, a vila dos “pica fumo”, ali perto da Base mas tão distante resto do mundo, e a quem devíamos erigir uma estátua de agradecimento. Elas também são parte importante desta história.
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